Contrário do que se pensa, há uma fronteira muito tênue entre escravidão e liberdade. O sofisma de que ‘não se concebe liberdade com escravidão’, se desconstrói com o substancial argumento de que ‘o homem mais livre é o escravo da lei’. Ou, como bem proclamou Cícero, “sou escravo do dever por amor à liberdade.” Portanto, ao longo de nossa história, a escravidão apenas mudou de forma e circunstância. O escravo da pólis grega tinha plena consciência de sua condição subserviente, assim como tinha percepção clara de sua classe opressora. Já, o escravo contemporâneo sofre alienadamente e desprovido de consciência, ou seja, é escravo sem se dar conta.

Enunciemos algumas premissas:

1) você é um escravo quando não dispõe de dois terços do dia para o descanso, lazer e ócio benfazejo. Uma das mais respeitadas especialistas em ‘workaholism’, a australiana Gayle Porter, sustenta que “o traço mais marcante do ‘workaholic’, que o identifica como ‘viciado’, é o fato de o seu comportamento causar problemas significativos, como a deterioração da saúde e o afastamento da família e dos amigos”, além de serem, comprovadamente, menos produtivos;

2) você também é um escravo quando sua felicidade está condicionada a um enorme espectro de necessidades inúteis, incluindo-se aqui a ditadura da estética corporal. Este é comumente reconhecido como ‘camelo de carga’;

 3) você segue sendo o mais expropriado dos escravos, quando trabalha cinco meses de seu ano para pagar impostos a ineptos e corruptos patrícios, e vendo seu país em marcha ré;
 

4) e reservo por último, o mais desgraçado dos vassalos. Aquele que se torna escravo de seus preconceitos e, notadamente, de seu próprio ego. Este é facilmente identificado pela necessidade de falar muito de si mesmo e de suas crenças, ao invés de construir em silêncio e com tolerância. Ao evidenciar reiteradamente seu próprio valor, está, em essência, revelando uma forma de se ocultar em sua senzala existencial.

 Conexo a esse perfil, o aforismo atribuído a Nietzsche de que “a arrogância por parte de quem tem mérito nos parece mais ofensiva que a arrogância de quem não o tem”, vem exprimir providencialmente os grilhões desse ‘neoescravo’ que se multiplica na sociedade moderna. Felizmente, em compensação, sempre haverá o alforriado, com seu ego pacificado. Esse, de acordo com Hugh Prathes, “não demonstra qualquer interesse em se comparar com outras pessoas. De modo geral, tem vida simples, comum, sente-se bem em qualquer lugar e, no cotidiano, emanam bem-estar e paz. Não alimenta preconceitos, tampouco conceitos inflexíveis ou hábitos rígidos. É fácil agradá-lo e, em geral, mostra-se feliz por nenhuma razão aparente”. Nutre sólidas amizades, pois sua sensibilidade parece orientar-se na lógica de Albert Camus: “não caminhe na minha frente, porque talvez eu não possa segui-lo. Não caminhe atrás de mim, porque talvez eu não possa guiá-lo. Caminhe do meu lado e seremos amigos” Na verdade, ele acha divertido e cativante os egos inflamados dos ‘neoescravos’. Que se amplie essa sintonia em nossa sociedade.

Rita Grubba

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